Ser escravo no Brasil
Obra de Katia Mattoso - 1° edição 1982
(Resumo de Rodrigo A Carvalho)
É uma obra, segundo a própria autora com a pretensão de alcançar um público numeroso. Não contêm citações e notas, o que facilita a leitura para o publico não acadêmico. Além disso, o leitor pode abordá-lo em qualquer ponto. Pode por exemplo começar a leitura pela segunda parte da obra, e talvez sua curiosidade o faça voltar às páginas iniciais, que narram o tráfico negreiro e as práticas dos comerciantes, especialistas na compra e venda dos cativos africanos que se tornariam escravos aqui no Brasil.
Katia Mattoso afirma que sua pesquisa é resultante de uma longa maturação e não o simples e frágil produto de uma temeridade inconsciente.[1]
A autora afirma que há duas visões sobre a escravidão brasileira: a idílica, e à contrária desta. Ela afirma ser necessário recorrer à documentação existente. (Disto percebemos a importância de fazer pesquisas, enriquecendo-as com novas fontes para se ter uma compreensão da escravidão no Brasil).
O título “Ser escravo no Brasil”, na voz passiva, já aponta um estilo: o desejo de adotar o próprio ponto de vista do escravo. Aponta a vontade de acompanhar cada passo de sua vida individual e coletiva.
O livro é divido em três partes, sendo que cada uma contêm três capítulos. A primeira pode-se dizer que aborda como o africano tornava-se escravo na África até a sua chega aos locais que trabalharão forçosamente no Brasil. A segunda parte pode-se dizer que aborda com precisão o título do livro, aborda como era ser escravo no Brasil. A terceira parte aborda como os escravos podiam se tornar livres, e indaga se realmente se tornavam livres, ainda aborda a relação dos supostos ex-escravos com os demais seguimentos da sociedade.
Na primeira parte aborda-se como se da o processo de escravidão na África. Faz uma síntese da história da África do século XVI ao XIX. Diz que houve quatro grandes ciclos que trouxeram africanos sucessivamente para o Brasil.[2] Mostra como os africanos compreendiam de forma diferente o conceito de escravo, afirma que escravo era uma das formas que o cativo podia assumir, e que não era forma predominante entre os africanos até a chegada dos europeus.[3] Neste capítulo analisa-se em primeiro lugar, a despersonalização do escravo: capturado, o africano é comprado, vendido, hipotecado, legado, incapaz de diálogo e sem vontade própria.
Na segunda parte duas grandes articulações temáticas surgem:
1) A noção de uma dualidade presente na sociedade escravista – mundo dos negros, mundo dos brancos -, mediada pelos libertos, em torno dos quais se forja pelo menos um equilíbrio precário. Tal dualidade é vivida de forma diferente pelos africanos, pelos negros nascidos nos Brasil e pelos mulatos.
2) A insistência já mencionada na multiplicidade e diversidade das situações: a oposição africanos/nascidos no Brasil/mulatos; consideração de diferentes estruturas econômicas-sociais, significando para o escravo maior ou menor autonomia e mobilidade, maior ou menor possibilidade de acumular pecúlio, etc.: mundo rural (engenhos, fazendas de café), minas, domesticidade, cidades, sertão da pecuária; diversidade percebida entre o Nordeste e o Sul, em função do grau de presença do branco imigrante, do qual decorrem possibilidades e problemas distintos para libertos.
Criticando certa historiografia que pinta um quadro idílico da escravidão brasileira, entre os quais Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre, mostra que esta historiografia ressaltou a imagem das fazendas em que feitores passeavam com o chicote na mão fazendo uso dela recorrentemente.[4] Para a autora, a consulta de uma vasta documentação mostra uma outra realidade, e que casos de sadomasoquismos de senhores e senhoras existiram, porém não eram tão frequentes quanto essa historiografia aponta, sendo o uso da violência restritos a períodos limitados. Para ela, os senhores enquanto empresários da agroindústria da cana-de-açúcar não estavam interessados em maltratar sua mão-de-obra, pois esta comprometeria a produtividade dos seus engenhos.
Do ponto de vista da alimentação inclusive, argumenta que a população pobre do século XX vive desnutrição muito maior que dos escravos do século XlX.[5] A autora sustenta que, em geral, o modo para se adaptar os escravos às condições de trabalho era de persuasão através de uma manipulação do caráter patriarcal e paternalista da identidade social do senhor. A primeira tentativa do senhor, portanto, é de ligar os escravos à ele por laços afetivos.[6]
De que forma se dá a adaptação dos escravos africanos nas fazendas? É preciso lembrar que o recém-chegado escravo africano acabou de passar por uma dessocialização do seu indivíduo, ou seja, extraído do seu meio social, seus vínculos familiares, de clã e de comunidade foram destruídos. A reconstrução da sua personalidade social será necessário na medida em que o africano fora dessocializado e transformado em mercadoria. A busca de sua repersonalização se dará a partir e nos limites da identidade social do seu senhor e familiares ao qual o escravo estava obrigatoriamente ligado. Foram no interior da escravidão das fazendas, das regiões mineradoras, dos sertões pecuários e das cidades que os africanos reconstruíram a sua personalidade social, que se desdobra em duas partes, a que estabelece vínculos econômicos, afetivos e religiosos com a comunidade escrava, e a outra que caracteriza a relação entre o escravo e seu senhor, a humildade, fidelidade e obediência que o primeiro deve ao segundo, mesmo quando este tripé foi usado como uma forma sutil de resistência à escravidão.[7]
Várias estratégias foram usadas pelos senhores para fragilizar as bases de união da comunidade escrava, a principiar pelas misturas de africanos de diversas etnias, esta tática impedia a coesão interna no interior da comunidade escrava. Outra forma de criar rivalidades entre os escravos era dar a algumas tarefas mais pesados que a outros. Isso acontecia de uma maneira mais incisiva na diferenciação das tarefas entre os escravos africanos e os escravos crioulos. De qualquer forma, para os que se adaptavam às condições de trabalho das fazendas, havia três tarefas fundamentais a serem atingidas, aprender a língua portuguesa, aceitar a religião católica e se disciplinar ao trabalho das fazendas, minas, cidades ou dos sertões. Quanto à religião, os africanos deram uma resposta original, imitação das exterioridades do catolicismo e o culto de suas próprias tradições religiosas, entre os quais o bantu, fon, iorubá aos poucos foram se mostrando aceitável para todos os africanos. Apenas o islamismo nas cidades se dirigiam a uma possível “elite negra”.[8]
Apesar de Mattoso mostrar como uma das principais bases da escravidão se articulava através da necessidade do escravo africano reconstruir a sua personalidade social a partir da identidade social do seu senhor de maneira que o último manipule o primeiro com a sua autoridade patriarcal e paternalista, é no nordeste que temos notícias de revoltas escravas em maior número e aonde os conflitos se mostraram mais violentos. A fuga, o suicídio, a formação de quilombos e as rebeliões, foram momentos que demonstraram muito mais a inadaptação dos escravos à escravidão. Foram nestes momentos que a repressão dos senhores entrava em cena, geralmente instrumentalizada pelas mãos dos feitores; o chicote, o pelourinho, os castigos corporais, assassinatos e às vezes a guerra declarada com o apoio do governo, em casos de rebeliões sérias como a dos Malês na Salvador de 1835 ou quilombos ameaçadores como dos Palmares que percorreu praticamente o século XVII inteiro.[9] Quando nos confrontamos com a documentação que registra este lado da escravidão - o da inadaptação dos negros às condições de trabalho escravo - notamos que não basta simplesmente afirmar que na sociedade das fazendas de engenhos havia bem menos mobilidade social do que nas cidades e regiões de mineração, ou que os escravos das minas e dos sertões viviam numa escravidão mais amena. O número de suicídios das cidades, por exemplo, era maior que das fazendas.[10]
Na terceira parte a autora analisa como se dava o processo de um escravo deixar de ser escravo. Ela mostra o que era a carta de alforria[11], sobre uma provável “miragem da liberdade”[12], e o liberto como “a ponte nas relações sociais”[13]. O estudo das alforrias e do destino dos libertos são reveladores para compreender as estruturas da escravidão e das mentalidades de senhores e escravos; e também tem ajudam a avançar na compreensão da sociedade pós-escravista.
A autora firma que esta nova leitura que faz do mundo dos escravos dispõe de uma documentação por certo fragmentaria, porem muito abundante. Que sem dúvida ela favorece mais o século XIX do que os anteriores. E que no Brasil não se possui qualquer depoimentos de escritos ou memórias de escravos, tão abundantes nos Estados Unidos. Mas, às fontes antigas (papéis oficiais, testemunhas dos contemporâneos, brasileiros ou estrangeiros) acrescentou-se toda uma série de documentos novos: testamentos, inventários de heranças, cartas de liberdade, processos judiciários, arquivos policiais e de associações leigas ou religiosas e as preciosas tradições orais de certas comunidades “afro-brasileiras” da atualidade.[14]
Referência bibliográfica:
MATTOSO, Katia. Ser escravo no Brasil. 3°ed. São Paulo: Brasiliense, 1190.
Biografia de Katia M. De Queirós Mattoso:
Nascida na Grécia, em 1932 e tendo falecido em 11 de janeiro de 2011, na cidade de Paris (França), aos 78 anos. Concluiu seus estudos secundários em 1949 no Lycée de Jeunes filles de Vólos. Seguiu seus estudos na Universidade de Lausanne (Suíça), graduando-se em 1953 e doutorando-se em 1955 em Ciência Política. Na Universidade Paris-Sorbonne (França) recebeu o título de doutora em Letras e Ciências Humanas em 1986. Foi para o Brasil no ano de 1956 e trabalhou no Comitê Intergovernamental Para as Migrações Européias, em São Paulo, onde conheceu o engenheiro brasileiro Sylvio de Queirós Mattoso, descendente do Conselheiro Eusébio de Queirós, com quem se casou e teve duas filhas.
Em 1957 seguiu para a Bahia, cuja paixão rendeu passagens pelas universidades Católica de Salvador e Federal da Bahia - UFBA, além de livros como Bahia, Século XIX: Uma Província no Império (1992) que levou à criação, em 1988, da cadeira de história brasileira na Sorbonne, comandada por ela até a aposentadoria em 1999.
Kátia Mattoso contribuiu de forma significativa para os estudos históricos no Brasil, especialmente naqueles sobre a história social da escravidão no país. Cientista política, historiadora e especialista em história social da escravidão no Brasil. Foi professora visitante da Universidade Columbia e da Universidade de Minnesota (EUA) e conferencista convidada do IEA. Entre suas obras estão "Ser Escravo no Brasil" (1982) e "Bahia Século 19 — Uma Província no Império" (1992). O segundo é a adaptação em livro da tese de doutorado que defendeu na Paris-Sorbonne. A tese propiciou a criação da cadeira de história brasileira naquela universidade em 1988, comandada por Kátia Mattoso até sua aposentadoria em 1999.
[1] Katia M. Mattoso. Ser escravo no Brasil. 3° ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 12
[2] Ibid., p. 22
[3] Ibid., p. 20
[4] Ibid., p. 119
[5] Ibid., p. 118
[6] Ibid., p. 116-117
[7] Ibid., p. 104.
[8] Ibid., p. 145-146
[9] Ibid., p. 165
[10] Ibid., p. 155
[11] Ibid., p. 176
[12] Ibid., p. 199
[13] Ibid., p. 219
[14] Ibid., p. 13.
http://www.historiaoffline.com/2014/10/ser-escravo-no-brasil-mattoso-katia.html
ResponderExcluirRodrigo, resenhou a obra de Kátia Mattoso da mesma forma que ela a escreveu: de forma singela e de f'acil absorção.
ResponderExcluirObrigado pela sua ajuda
ResponderExcluirMuito him.
ResponderExcluir