sábado, 26 de maio de 2012

15 de Outubro (Fortaleza)

Desde a infância de outrora,
Que meu coração ficava a bater.
No anteceder de cada aurora,
Ansioso pela vida acontecer.

Fascinado pelo desejo de alcançar...
Por ver novo dia aparecer.
Do viver, do amar e do chorar.
Por ter sempre algo a pretender.

Sempre ansioso por um sonho realizar
E a cada instante um novo sonho sonhar.
Buscar, alcançar, e tornar a sonhar!

Que bom ter algo a buscar.
E não ficar a vê a vida passar.
Mas dizer: sonhei, busquei e pude amar.....
Autor: Rodrigo A Carvalho

Resumo: Ser escravo no Brasil

Ser escravo no Brasil
Obra de Katia Mattoso - 1° edição 1982
(Resumo de Rodrigo A Carvalho)

É uma obra, segundo a própria autora com a pretensão de alcançar um público numeroso. Não contêm citações e notas, o que facilita a leitura para o publico não acadêmico. Além disso, o leitor pode abordá-lo em qualquer ponto. Pode por exemplo começar a leitura pela segunda parte da obra, e talvez sua curiosidade o faça voltar às páginas iniciais, que narram o tráfico negreiro e as práticas dos comerciantes, especialistas na compra e venda dos cativos africanos que se tornariam escravos aqui no Brasil.
Katia Mattoso afirma que sua pesquisa é resultante de uma longa maturação e não o simples e frágil produto de uma temeridade inconsciente.[1]
A autora afirma que há duas visões sobre a escravidão brasileira: a idílica, e à contrária desta. Ela afirma ser necessário recorrer à documentação existente. (Disto percebemos a importância de fazer pesquisas, enriquecendo-as com novas fontes para se ter uma compreensão da escravidão no Brasil).
O título “Ser escravo no Brasil”, na voz passiva, já aponta um estilo: o desejo de adotar o próprio ponto de vista do escravo. Aponta a vontade de acompanhar cada passo de sua vida individual e coletiva.
O livro é divido em três partes, sendo que cada uma contêm três capítulos. A primeira pode-se dizer que aborda como o africano tornava-se escravo na África até a sua chega aos locais que trabalharão forçosamente no Brasil. A segunda parte pode-se dizer que aborda com precisão o título do livro, aborda como era ser escravo no Brasil. A terceira parte aborda como os escravos podiam se tornar livres, e indaga se realmente se tornavam livres, ainda aborda a relação dos supostos ex-escravos com os demais seguimentos da sociedade.
Na primeira parte aborda-se como se da o processo de escravidão na África. Faz uma síntese da história da África do século XVI ao XIX.  Diz que houve quatro grandes ciclos que trouxeram africanos sucessivamente para o Brasil.[2] Mostra como os africanos compreendiam de forma diferente o conceito de escravo, afirma que escravo era uma das formas que o cativo podia assumir, e que não era forma predominante entre os africanos até a chegada dos europeus.[3] Neste capítulo analisa-se em primeiro lugar, a despersonalização do escravo: capturado, o africano é comprado, vendido, hipotecado, legado, incapaz de diálogo e sem vontade própria.
Na segunda parte duas grandes articulações temáticas surgem:
1)      A noção de uma dualidade presente na sociedade escravista – mundo dos negros, mundo dos brancos -, mediada pelos libertos, em torno dos quais se forja pelo menos um equilíbrio precário. Tal dualidade é vivida de forma diferente pelos africanos, pelos negros nascidos nos Brasil e pelos mulatos.
2)      A insistência já mencionada na multiplicidade e diversidade das situações: a oposição africanos/nascidos no Brasil/mulatos; consideração de diferentes estruturas econômicas-sociais, significando para o escravo maior ou menor autonomia e mobilidade, maior ou menor possibilidade de acumular pecúlio, etc.: mundo rural (engenhos, fazendas de café), minas, domesticidade, cidades, sertão da pecuária; diversidade percebida entre o Nordeste  e o Sul, em função do grau de presença do branco imigrante, do qual decorrem possibilidades e problemas distintos para libertos.
Criticando certa historiografia que pinta um quadro idílico da escravidão brasileira, entre os quais Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre, mostra que esta historiografia ressaltou a imagem das fazendas em que feitores passeavam com o chicote na mão fazendo uso dela recorrentemente.[4] Para a autora, a consulta de uma vasta documentação mostra uma outra realidade, e que casos de sadomasoquismos de senhores e senhoras existiram, porém não eram tão frequentes quanto essa historiografia aponta, sendo o uso da violência restritos a períodos limitados. Para ela, os senhores enquanto empresários da agroindústria da cana-de-açúcar não estavam interessados em maltratar sua mão-de-obra, pois esta comprometeria a produtividade dos seus engenhos.
Do ponto de vista da alimentação inclusive, argumenta que a população pobre do século XX vive desnutrição muito maior que dos escravos do século XlX.[5] A autora sustenta que, em geral, o modo para se adaptar os escravos às condições de trabalho era de persuasão através de uma manipulação do caráter patriarcal e paternalista da identidade social do senhor. A primeira tentativa do senhor, portanto, é de ligar os escravos à ele por laços afetivos.[6]
De que forma se dá a adaptação dos escravos africanos nas fazendas? É preciso lembrar que o recém-chegado escravo africano acabou de passar por uma dessocialização do seu indivíduo, ou seja, extraído do seu meio social, seus vínculos familiares, de clã e de comunidade foram destruídos. A reconstrução da sua personalidade social será necessário na medida em que o africano fora dessocializado e transformado em mercadoria. A busca de sua repersonalização se dará a partir e nos limites da identidade social do seu senhor e familiares ao qual o escravo estava obrigatoriamente ligado. Foram no interior da escravidão das fazendas, das regiões mineradoras, dos sertões pecuários e das cidades que os africanos reconstruíram a sua personalidade social, que se desdobra em duas partes, a que estabelece vínculos econômicos, afetivos e religiosos com a comunidade escrava, e a outra que caracteriza a relação entre o escravo e seu senhor, a humildade, fidelidade e obediência que o primeiro deve ao segundo, mesmo quando este tripé foi usado como uma forma sutil de resistência à escravidão.[7]
Várias estratégias foram usadas pelos senhores para fragilizar as bases de união da comunidade escrava, a principiar pelas misturas de africanos de diversas etnias, esta tática impedia a coesão interna no interior da comunidade escrava. Outra forma de criar rivalidades entre os escravos era dar a algumas tarefas mais pesados que a outros. Isso acontecia de uma maneira mais incisiva na diferenciação das tarefas entre os escravos africanos e os escravos crioulos. De qualquer forma, para os que se adaptavam às condições de trabalho das fazendas, havia três tarefas fundamentais a serem atingidas, aprender a língua portuguesa, aceitar a religião católica e se disciplinar ao trabalho das fazendas, minas, cidades ou dos sertões. Quanto à religião, os africanos deram uma resposta original, imitação das exterioridades do catolicismo e o culto de suas próprias tradições religiosas, entre os quais o bantu, fon, iorubá aos poucos foram se mostrando aceitável para todos os africanos. Apenas o islamismo nas cidades se dirigiam a uma possível “elite negra”.[8]
Apesar de Mattoso mostrar como uma das principais bases da escravidão se articulava através da necessidade do escravo africano reconstruir a sua personalidade social a partir da identidade social do seu senhor de maneira que o último manipule o primeiro com a sua autoridade patriarcal e paternalista, é no nordeste que temos notícias de revoltas escravas em maior número e aonde os conflitos se mostraram mais violentos. A fuga, o suicídio, a formação de quilombos e as rebeliões, foram momentos que demonstraram muito mais a inadaptação dos escravos à escravidão. Foram nestes momentos que a repressão dos senhores entrava em cena, geralmente instrumentalizada pelas mãos dos feitores; o chicote, o pelourinho, os castigos corporais, assassinatos e às vezes a guerra declarada com o apoio do governo, em casos de rebeliões sérias como a dos Malês na Salvador de 1835 ou quilombos ameaçadores como dos Palmares que percorreu praticamente o século XVII inteiro.[9] Quando nos confrontamos com a documentação que registra este lado da escravidão - o da inadaptação dos negros às condições de trabalho escravo - notamos que não basta simplesmente afirmar que na sociedade das fazendas de engenhos havia bem menos mobilidade social do que nas cidades e regiões de mineração, ou que os escravos das minas e dos sertões viviam numa escravidão mais amena. O número de suicídios das cidades, por exemplo, era maior que das fazendas.[10]
Na terceira parte a autora analisa como se dava o processo de um escravo deixar de ser escravo. Ela mostra o que era a carta de alforria[11], sobre uma provável “miragem da liberdade”[12], e o liberto como “a ponte nas relações sociais”[13].  O estudo das alforrias e do destino dos libertos são reveladores para compreender as estruturas da escravidão e das mentalidades de senhores e escravos; e também tem ajudam a avançar na compreensão da sociedade pós-escravista.
A autora firma que esta nova leitura que faz do mundo dos escravos dispõe de uma documentação por certo fragmentaria, porem muito abundante. Que sem dúvida ela favorece mais o século XIX do que os anteriores.  E que no Brasil não se possui qualquer depoimentos de escritos ou memórias de escravos, tão abundantes nos Estados Unidos. Mas, às fontes antigas (papéis oficiais, testemunhas dos contemporâneos, brasileiros ou estrangeiros) acrescentou-se toda uma série de documentos novos: testamentos, inventários de heranças, cartas de liberdade, processos judiciários, arquivos policiais e de associações leigas ou religiosas e as preciosas tradições orais de certas comunidades “afro-brasileiras” da atualidade.[14]

Referência bibliográfica:
MATTOSO, Katia. Ser escravo no Brasil. 3°ed. São Paulo: Brasiliense, 1190.













Biografia de Katia M. De Queirós Mattoso:
Nascida na Grécia, em 1932 e tendo falecido em 11 de janeiro de 2011, na cidade de Paris (França), aos 78 anos. Concluiu seus estudos secundários em 1949 no Lycée de Jeunes filles de Vólos. Seguiu seus estudos na Universidade de Lausanne (Suíça), graduando-se em 1953 e doutorando-se em 1955 em Ciência Política. Na Universidade Paris-Sorbonne (França) recebeu o título de doutora em Letras e Ciências Humanas em 1986. Foi para o Brasil no ano de 1956 e trabalhou no Comitê Intergovernamental Para as Migrações Européias, em São Paulo, onde conheceu o engenheiro brasileiro Sylvio de Queirós Mattoso, descendente do Conselheiro Eusébio de Queirós, com quem se casou e teve duas filhas.
Em 1957 seguiu para a Bahia, cuja paixão rendeu passagens pelas universidades Católica de Salvador e Federal da Bahia - UFBA, além de livros como Bahia, Século XIX: Uma Província no Império (1992) que levou à criação, em 1988, da cadeira de história brasileira na Sorbonne, comandada por ela até a aposentadoria em 1999.
Kátia Mattoso contribuiu de forma significativa para os estudos históricos no Brasil, especialmente naqueles sobre a história social da escravidão no país.  Cientista política, historiadora e especialista em história social da escravidão no Brasil. Foi professora visitante da Universidade Columbia e da Universidade de Minnesota (EUA) e conferencista convidada do IEA.  Entre suas obras estão "Ser Escravo no Brasil" (1982) e "Bahia Século 19 — Uma Província no Império" (1992). O segundo é a adaptação em livro da tese de doutorado que defendeu na Paris-Sorbonne. A tese propiciou a criação da cadeira de história brasileira naquela universidade em 1988, comandada por Kátia Mattoso até sua aposentadoria em 1999.




[1] Katia M. Mattoso. Ser escravo no Brasil. 3° ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 12
[2] Ibid., p. 22
[3] Ibid., p. 20 
[4] Ibid., p. 119
[5] Ibid., p. 118
[6] Ibid., p. 116-117
[7] Ibid., p. 104.
[8] Ibid., p. 145-146
[9] Ibid., p. 165
[10] Ibid., p. 155
[11] Ibid., p. 176
[12] Ibid., p. 199
[13] Ibid., p. 219
[14] Ibid., p. 13.


sábado, 19 de maio de 2012

Bons tempos.....eu podia guardar um tempo para escrever...

Por Inteiro II
O ardor do passado ao seu lado,
O encanto do futuro esperado.
A saudade d’um passado primoroso,
E um cândido futuro desejoso.

Deixarei a nostalgia do passado.
Deixarei o futuro esperado.
Viverei o presente cobiçoso!
Ficarei totalmente ansioso:

Por seu olhar formoso, encantado!
Por seu falar garboso, deslumbrado!
Por seu amor fascinante, cativado!

Se me desejas, apague o passado.
Nem espere o futuro sonhado.
Prometo-te, é o hoje ao seu lado....

Autor: Rodrigo A. C.
(29-05-2003, Fortaleza)

terça-feira, 8 de maio de 2012

Resenha da obra O Navio Negreiro – Uma História Humana do autor Marcus Rediker.


Autor: Rodrigo André de Carvalho 
Graduando em Licenciatura em História 2011-2

Título original: The slave ship: A Human History, no Brasil foi traduzido por Luciano Vieira Machado e publicado em 2011 pela editora Companhia das Letras com o título de O Navio Negreiro: Uma História Humana. Tendo na edição brasileira 446 páginas.
Markus Rediker nasceu em Owensboro, Kentucky, em 1951. Graduou-se na Universidade de Virginia Commonwealth, fez Ph.D em história na Universidade da Pensilvânia. Alem da obra The Slave Ship: A Human History  - 2007 (O Navio Negreiro – Uma história humana), escreveu também Between the Devil and Deep Blue Sea  -1987 (Entre o Diabo e o Deep Blue Sea); Who Built America? - ­1989 (Quem construiu a América?); The Many-Headed Hydra  - 2000 (A hidra de muitas cabeças); Villains of All Nations  – 2004 (Vilões de Todas as Nações); Many Middle Passages ­ - 2007 (Muitas passagens Médio).
A presente obra esta dividida em dez capítulos alem da introdução, epílogo e uma rica quantidade de notas e fontes ao final do livro muito útil a quem tiver interesse pelo assunto e quiser se aprofundar no estudo.
 Markus Rediker mescla cifras, análise política e depoimentos de atores do que foi a maior migração forçada da história para mostrar como o Navio Negreiro foi parte fundamental do Tráfico de Africanos Escravizados. O autor demonstra que há muitas pesquisas pungentes sobre o drama dos africanos escravizados, mas que não existe um estudo amplo da embarcação que tornou possível o comércio que transformou o mundo:

 Não existe análise do instrumento que facilitou a ‘revolução comercial’ da Europa, a exploração de plantations, a edificação de impérios mundiais, o desenvolvimento do capitalismo e, finalmente a industrialização (REDIKER, 2011, p.18)

A obra O Navio Negreiro – Uma História Humana tem uma narrativa envolvente, que consegue fazer conexões entre detalhes da operação do tráfico de africanos com os aspectos mais amplos do sistema econômico e social que usou o navio como principal veiculo de expansão global na era moderna.
A leitura do livro O Navio Negreiro não é uma leitura agradável! Não é agradável no sentido que causa dor ao leitor que consegue acompanhar o sofrimento de milhões de africanos que foram submetidos as terríveis situações nos porões dos navios negreiros. O autor afirma: “(...) foi doloroso escrever este livro e, caso eu tenha feito alguma justiça ao tema, lê-lo também o será. Não há maneira de se evitar isso, nem deve haver” (REDIKER, 2011, p. 21).
O autor, professor de história da Universidade de Pittsburgh, também deixa claro que ele não escreveu a primeira história do comércio de escravos. Rediker (2011) enumera várias autores e obras dignas, como por exemplo Philip Curtin com The African slave trade: census(1969), e a grande síntese de Hugh Thomas em The slave trade: the story of the African slave trade, 1440-1870 (1999), e elogia várias outros autores e obras literárias que têm tratado o assunto, incluindo Beloved (1987) de Toni Morrison, Middle Passage (1991) de Charles Johnson,  Sacred Hunger (1993) de  Barry Unsworth, The Atlantic sound (2005) de Caryl Phillips.
O próprio Rediker se questiona então, por que se incomodar ao ler o seu livro?
Há duas boas razões. É que o Navio Negreiro conta a história do comércio de carne humana a partir de uma perspectiva inexplorada: os porões dos navios negreiros.
O autor (REDIKER, 2011, p.13) nos mostra que na Passagem do Meio 1,8 milhão de africanos morreram e tiveram seus corpos lançados ao mar, para proveito de tubarões que seguiam os navios. Ao adicionar também a estimativa de 1,8 milhões de pessoas que morreram ainda no continente africano a caminho do navios, e os três quartos de um milhão de pessoas que expirou durante o primeiro ano como escravos no Novo Mundo se começa a entender por que o grande erudito e ativista afro-americano  W.E.B DuBois chama o comércio de escravos:  

(...) o mais grandioso drama dos últimos mil anos da história da humanidade: a transferência de 10 milhões de seres humanos de beleza negra de seu continente natal para o recém-descoberto Eldorado do Ocidente. Eles desceram ao inferno. (DUBOIS apud REDIKER, 2011 p. 12.)

Rediker concentra-se em quatro narrativas, pode-se dizer em quatro dramas:
O primeiro foi a interação entre os capitães dos navios, como um ser todo-poderoso e suas cargas (os africanos), muitas vezes dispensáveis; o segundo foi a violência constante entre os marinheiros e os escravos; o terceiro foi a cooperação entre os povos escravizados que às vezes não conseguia nem falar uns com os outros  por causa da diferença entre os seus idiomas; na quarta narrativa, Rediker mostra que este último drama surgiu não no navio, mas nas sociedade  civil da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, quando os abolicionistas traçaram inúmeros terríveis retratos da Passagem do Meio para o público leitor metropolitano. Estas quatro narrativas não operam isoladamente, mas a compreensão da dinâmica de cada mostra claramente um quadro mais completo de como um tipo de comércio era capaz de florescer durante quase 400 anos e como ele finalmente foi capaz de ser interrompido.
            A leitura do livro torna-se mais chocante, porque o autor não fez apenas suposições do que ocorreria nos navios, Rediker usa narrativas de personagens reais como a de capitães, marujos, comerciantes, abolicionistas, e mesmo de africanos escravizados que de algum modo tiveram suas experiências transcritas e puderam ser reproduzidas décadas depois, como neste livro O Navio Negreiro: Uma História Humana.
O navio negreiro, escreve Rediker, foi uma combinação estranha e potente de máquina de guerra, prisão móvel, e de fábrica:

O amplo e bem armado navio negreiro era uma poderosa máquina de navegação, mas era também algo além disso, algo sui generis, como o sabiam Thomas Gordon e seus contemporâneos. Era também uma feitoria e uma prisão, e nessa combinação reside sua índole e seu horror. A palavra factory (feitoria) começou a ser usada em fins do século XVI, quando se deu a expansão do comercio global. Ela deriva da palavra factory era “um estabelecimento para comerciantes que faziam negócios num país estrangeiro”. Era um posto mercantil de um comerciante. (...)
O navio era uma feitoria no sentido original do termo, mas o era também no sentido moderno, de fabrica (2011, p. 53).

O navio-fábrica, não só transformou as pessoas que para lá foram levados, em trabalhadores para as plantações, mas também produziu o conceito de "raça", o capitão e a tripulação - até mesmo os marinheiros de pele escura - foram referidos como "branco", enquanto os cativos, embora representassem uma grande variedade de etnias, tornou-se "a raça negra" como bem mostra Rediker (2011, p.136-140; p.313).
Em última análise, esta transformação – e a criação do racismo como um meio de tolerar tal prática desumana - foi realizado por pessoas que não estavam a bordo do navio de escravos:

(...) os dramas que se desenrolaram no convés de um navio negreiro tornaram-se possíveis – pode-se dizer mesmo estruturados – pelo capital e poder de pessoas que se encontravam muito longe do navio. Os dramas de que tomavam parte capitães, marujos e escravos africanos a bordo do navio negreiro inseriam-se num drama mais amplo, o surgimento e o desenvolvimento do capitalismo em todo o mundo (REDIKER, 2011, p.357).

 Rediker ressaltar que a importância da violência e do terror na própria formação da economia atlântica e de seus múltiplos sistemas de trabalho nos séculos XVII e XVIII: Mesmo os melhores historiadores do tráfico de escravos e da escravidão tenderam a minimizar, talvez mesmo a sanear, a violência e o terror que eram a própria essência do tráfico e da escravidão (2011 p.359).

Rediker chega a uma conclusão instigante: A violência do tráfico não foi um acidente, mas foi fundamental para a ascensão do capitalismo global (2011 p. 52). O autor afirma que:

 O Navio Negreiro não apenas tinha entregado milhões de pessoas à escravidão, mas as tinha preparado para isso. Era uma preparação literal, feita pela tripulação: arranjavam-se os corpos dos escravos para serem vendidos; cortavam a barba e os cabelos dos homens; tingiam de preto os cabelos grisalhos; untavam-lhes o tronco com azeite de dendê. A preparação também implicava a submissão à disciplina da escravidão (REDIKER, 2011, p.354).

Rediker (2011, p. 358) adverte que o comércio de escravos foi finalmente abandonado, mas a violência e o terror que sempre foram temas centrais para a ascensão e operação contínua do capitalismo ainda está conosco, como é o racismo que a escravidão gerou.
Colocar um rosto humano em ambos: os opressores e os oprimidos. A obra O Navio Negreiro confronta o humano na violenta história do tráfico de africanos escravizados. Pode não ser uma leitura fácil, mas mostra o terror que um grupo de pessoas é capaz de fazer a outras pessoas para a obtenção de lucro e dinheiro.

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Referência:

REDIKER, Marcus. O Navio Negreiro. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 446 p.

ABNT. NBR6023: informação e documentação: elaboração:
referências. Rio de Janeiro, 2002. 24 p.

ABNT. NBR10520: informação e documentação: citação em
documentos. Rio de Janeiro, 2002. 7 p.